quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O ERMITÃO

O Ermitão

Por Lilian Andrade
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Ainda que não fosse totalmente isolado das coisas mundanas, vivia ele no mais completo recolhimento de si mesmo, fazendo de seu modo de vida uma ideologia toda singular, cuja existência voltava-se para a solidã
o constante, tornando inquestionável o seu recrutamento espiritual. A eloquência de seu silêncio trazia à tona a expressividade da reflexão ou da não reflexão de sua vida temporal, na qual trancafiava sua alma numa redoma solitária e distante, denunciando na postura conformada e pacienciosa os gritos emudecidos do espírito.



Outrora fora rebelde e a revolta de seu âmago o conduziu à transformações infindas de bondade, tornando-se perene em sua conduta de cristão e em seus momentos de isolamento.
Falava o necessário, ria do inevitável, rezava o suficiente e calava-se aos insultos. Guardava na memória afetos familiares e vivências de alegrias. Fizera legião de amigos na pequena cidade que viveu, dando-lhes prendas quase que constantemente.



Nasceu no campo, ainda no século passado, antes de seu irmão Napoleão (que não era o Bonaparte). De parto doméstico, veio ao mundo, ficando órfão de mãe nos primórdios da infância. Neto legítimo do argentário velho Nogueira, era também considerado abonado, herdeiro de 'feudos' e filho de um comerciante alegre e tocador de sanfona.



No cartório, foi registrado se tornando cidadão - um pacato cidadão do Quilômetro Cinquenta e Um. Não era tido como membro das classes subalternas nem considerado explorador das classes dominantes, foi apenas um ser subjetivo que habitava o mundo de forma externa dos demais.



Vivendo no tempo das travessias dos carros de bois a cruzar as estradas de chão batido, foi feliz na plenitude da vida simples; contudo, viu o progresso chegar e extingir os saudosos meios de transportes rudimentares. Presenciando os mascates viajantes a oferecer seus artigos ora nos rústicos estabelecimentos comerciais, ora de porta em porta, foi testemunha do progresso da economia e das transformações das permutações de produtos. Atravessando pinguelas a passos lentos chegava sempre do outro lado... 



Foi ele proprietário de terras, caixeiro e motorista do próprio veículo, uma rural verde bandeira, da qual transportou certa vez sob autorização do presidente do Diretório da Arena, eleitores do ano de 1970.
Vivia tranquilo, sem pressa e jamais atuava com destreza, caminhando lentamente alcançava seu paradeiro. Quando almejava escutar algo que lhe fosse conveniente a fim de ampliar suas informações e curiosidades, diminuía o passo. 



Não era adepto à correria do mundo vigente: a globalização e o capitalismo não fizeram dele um agilizador financeiro nem um sujeito apressador e empreendedor; portanto, na sua lentidão, viveu sempre com posses materiais, acumulando capital, e um pouco mais de cinco mil contos de reis foram encontrados nos mais inusitados locais.



Preservava relíquias de entes queridos mais próximos e na memória guardava lembranças perdidas no tempo.



Trancado pela solidão espiritual, tinha uma vida interior "ascética", transformando-o num ser retraído de emoções e sentimentos; portanto, expressivo nos gestos de companhia, fazendo-se entender na sua forma de amar.



Numa tarde de setembro partiu o ermitão para a vida eterna e fazendo jus à sua estadia neste tempo, há de estar ele ainda abrindo os portões do paraíso, dizendo a São Pedro: "devagar também chegaremos ao Reino dos Céus".



Fonte: Maria Benedita Luz - Florianópolis -SC

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